Verificação de idade a proibição de apostas esportivas, influenciadores do esporte e entretenimento precisarão revisar contratos.
Cerca de 93% das crianças e adolescentes brasileiros entre 9 e 17 anos acessam a internet regularmente, segundo o CGI – Comitê Gestor da Internet. Esse público, altamente conectado e vulnerável, tornou-se o principal alvo de estratégias de marketing digital, muitas vezes disfarçadas de conteúdo orgânico e apresentadas por influenciadores com enorme poder de persuasão. A partir de agora, porém, essa realidade terá novos limites legais.
O recém-sancionado “ECA Digital”, atualização legislativa do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), destina-se a regular de forma específica a presença de crianças e adolescentes na internet, com foco especial em redes sociais, jogos, plataformas de conteúdo e publicidade digital. A lei busca dar diretrizes regulatórias a um conjunto de mazelas que se agravaram nos últimos anos, tais como a exposição indevida de meninos e meninas em conteúdos monetizados, coleta abusiva de dados pessoais, estímulo ao consumismo precoce e a utilização de influenciadores como canais diretos de publicidade sem filtros e controles adequados.
Os casos concretos que contribuíram para essa mudança são emblemáticos. Um deles, que ilustra os riscos da monetização sem limites, é o da influenciadora-mirim “Bel para Meninas”, cujo canal foi alvo de investigações do Ministério Público por suposta exploração comercial infantil e violação de direitos da personalidade. Outro caso relevante foi a condenação da marca de brinquedos Mattel, por utilizar youtubers para promover produtos sem informar que se tratava de publicidade dirigida a crianças, decisão fundamentada no art. 37, §2º, do CDC, que considera abusiva a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento do público infantil.
Novas regras para um mercado bilionário
Agora, a participação de crianças e adolescentes na criação de conteúdo de natureza comercial deve observar a legislação trabalhista aplicável, limites de jornada, frequência escolar e destinação protegida de receitas, com supervisão dos responsáveis e, quando cabível, autorização judicial. Pais ou responsáveis, agências e anunciantes compartilham deveres de cuidado e podem responder por exploração comercial e violação de direitos da personalidade.
Cada vez maior, a presença de menores de idade em conteúdos relacionados a apostas esportivas e jogos online também acendeu alertas em órgãos reguladores. Muitos influenciadores passaram a promover plataformas de BETs em vídeos com linguagem e estética voltadas ao público jovem, sem qualquer filtro etário ou aviso de restrição. Tais práticas são consideradas potencialmente ilícitas tanto pelo ECA quanto pelo marco civil da internet (lei 12.965/14), que impõe deveres de cuidado às plataformas no tratamento de dados e proteção de vulneráveis, quanto pela LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, que tem dispositivos para proteger os direitos fundamentais de liberdade, privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
O tratamento de dados de crianças exige consentimento específico e em destaque de ao menos um dos responsáveis legais (LGPD, art. 14), com observância dos princípios de finalidade, necessidade e minimização de dados. Interesse legítimo não se aplica para perfis infantis na base publicitária, sendo vedado o perfilamento para publicidade comportamental e o compartilhamento com adtechs para esse fim.
Já a verificação de idade deve observar a proporcionalidade: suficiente para reduzir o risco, mas sem impor coleta excessiva (especialmente de dados sensíveis). Recomenda-se abordagem multifatorial (sinais de uso, confirmação do responsável, mecanismos técnicos de restrição), com registros auditáveis e retenção mínima.
O que muda para influenciadores e marcas
Com a aprovação do ECA Digital, influenciadores e marcas terão de adotar novos padrões de atuação. A legislação estabelece obrigações que incluem, além de verificação de idade e mecanismos de consentimento parental, transparência na publicidade como conteúdo patrocinado, com linguagem acessível e sem indução ao consumo; responsabilidade solidária de criadores e marcas por danos decorrentes de exposição indevida de menores, conteúdo impróprio ou publicidade enganosa; e restrição a determinados conteúdos. Jogos de azar, apostas esportivas, lootboxes e serviços financeiros, por exemplo, não poderão ser promovidos em canais com audiência predominantemente composta por crianças e adolescentes.
A divulgação de patrocínios também precisará ser mais criteriosa, e a segmentação de público se tornará uma questão estratégica e jurídica, sob pena de autuações por órgãos de defesa do consumidor, ações civis públicas e sanções administrativas.
Práticas de design que explorem vulnerabilidades cognitivas, como autoplay infinito, urgência artificial, gamificação que induza compra ou nudge para compartilhamento, devem ser evitadas em ambientes acessíveis a menores. Dentre as boas práticas possíveis, incluem-se timers, controles parentais, rótulos visíveis, redução de notificações e opt-in e opt-out claros para qualquer forma de rastreamento.
Compliance como imperativo de mercado
Para os setores mais dinâmicos do ecossistema digital, a nova lei impõe a necessidade urgente de compliance e autorregulação. Clubes, organizadores de eventos, plataformas de apostas e estúdios desenvolvedores de games deverão revisar seus contratos com influenciadores, ajustar políticas internas de publicidade, além de implementar mecanismos técnicos de verificação etária.
A entrada em vigor do ECA Digital impõe uma nova dimensão às práticas de compliance digital de empresas, plataformas e influenciadores. Agora, já não basta observar as regras gerais de publicidade e privacidade; é necessário instituir políticas internas específicas, com critérios objetivos de segmentação etária, aprovação prévia de campanhas e monitoramento constante de conteúdo. Um programa de conformidade digital robusto deve incluir protocolos de validação de idade, cláusulas contratuais protetivas com influenciadores, auditorias periódicas e treinamento de equipes de marketing e mídia. Essa governança preventiva não apenas reduz o risco jurídico, mas demonstra compromisso social e ético com o uso responsável da internet, em linha com os princípios da LGPD.
Gestão de riscos e resposta a incidentes
Marcas, agências, plataformas e creators devem firmar contratos com cláusulas claras de segmentação etária, validação de idade, transparência publicitária (exemplos: #publi/#ad), cooperação em takedown, seguro de responsabilidade civil, direito de auditoria, proibição de publicidade comportamental para crianças e penalidades por reincidência, incluindo a possibilidade de rescisão.
Em incidentes envolvendo menores, recomenda-se canal prioritário, retirada ágil do conteúdo, preservação de provas, avaliação de risco e comunicação às autoridades competentes, como ANPD, Ministério Público e Procon, conforme o caso. Devem existir playbooks com papéis e prazos definidos, além de logs para auditoria.
Ações educativas e campanhas de conscientização ganharão importância estratégica. A narrativa de responsabilidade social e proteção de menores, antes vista como diferencial reputacional, torna-se agora um imperativo regulatório e competitivo.
O ECA Digital não só representa mais uma lei no complexo mosaico regulatório da internet, como também sinaliza uma mudança de paradigma na forma como sociedade, empresas e criadores de conteúdo devem encarar a presença de crianças e adolescentes no ambiente digital. A lógica da monetização a qualquer custo, tão comum na última década, tende a dar lugar a um modelo baseado em responsabilidade, transparência e proteção.
Mais do que cumprir a lei, profissionalizar a gestão digital e adotar programas de compliance tornaram-se essenciais para influenciadores, marcas e agências. O ECA Digital exige regras claras e monitoradas, sob pena de não apenas gerar sanções legais, mas também abalar a reputação e afastar parcerias comerciais. Estar em conformidade, portanto, é também uma forma de preservar credibilidade e sustentabilidade no mercado digital.
Espera-se, com essa nova medida, um ecossistema mais seguro, ético e sustentável, no qual o potencial transformador do conteúdo digital seja preservado, mas sem colocar em risco o desenvolvimento, a dignidade e os direitos de crianças e adolescentes. Para os influenciadores e marcas, trata-se menos de um obstáculo e mais de uma oportunidade: a de construir relações de confiança com um público cada vez mais atento, exigente e protegido pela lei.
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/443998/como-o-eca-digital-vai-regular-influenciadores-no-brasil